quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Giuseppe Verdi - Uma Vida Que Daria Um Libreto


Soldados russos e austríacos invadem de maneira avassaladora o pequeno povoado que não possui mais de duzentos habitantes. A soldadesca sanguinária persegue e assassina todos os moradores que consegue encontrar, sem fazer distinção. A mortandade inclui mulheres, crianças e velhos. Em meio ao caos e à correria um grupo de mulheres foge em desabalada carreira para a igreja levando suas crianças, na tentativa desesperada de escapar à morte eminente. Nem alí estão à salvo. A tropa ensandecida invade a igreja impondo àquelas mulheres a mesma barbárie que vinha perpetrando nas ruas. Em meio à confusão uma jovem fiandeira, com um filho de poucos meses ao peito, corre para a sacristia e vislumbrando uma pequena porta de saída entra por ela. É o acesso à uma escada muito estreita que leva ao ambiente acanhado de uma torre. Luíza, a fiandeira, permaneceu alí por horas, com o filho grudado ao seio, até que o perigo houvesse cessado.

A criança que está ao colo de Luíza é o pequeno Joseph François, nome de batismo daquele que viria a ser o compositor das óperas Aída, La Traviata, Otelo e tantas outras.

O fato se dá na aldeola de Roncole, que faz parte de um vilarejo chamado Busseto, localizado entre as cidades de Parma e Piacenza. O território à época era ocupado pelos franceses e, estando próxima do fim a luta contra Napoleão na Europa, foi invadido por tropas russas e austríacas em 1814.

Em 1813, portanto um ano antes do episódio, na Província de Piacenza, no norte da Itália, então território francês, foi levado a termo, em francês, o seguinte registro de nascimento:

“No ano de 1813, a 12 de outubro, às nove horas da manhã, perante mim, maire de Busseto, autoridade civil da dita comuna de Busseto, no departamento de Taro, compareceu Verdi, Carlo, de vinte e oito anos de idade, estalajadeiro, domiciliado em Roncole, que nos apresentou uma criança do sexo masculino, nascida a dez do mês corrente, às oito horas da noite, filho do declarante e de sua esposa Luíza Utini, fiandeira, domiciliada em Roncole, e à cuja criança declarou ser seu desejo dar os nome de batismo de Joseph Fortunin François. A dita declaração e apresentação foi feita na presença de Romanelli Antoine, de cinqüenta e um anos, meirinho do maire e de Cantú Hiacinte, de sessenta e um anos, guarda-portão, domiciliado em Busseto, os quais, depois de o presente assento ter lido ao comparecente e às testemunhas, assinam conosco. Antoine Romanelli, Verdi Carlo, Hiacinte Cantù, Vitali”.

Assim foi registrado o nascimento de Giuseppe Fortunino Francesco Verdi, declarado por seu pai, Carlo, que era um estalajadeiro muito simples e dado ao consumo constante de bebidas; o nome francês é em função do território estar sob a dominação de Napoleão à época.

Giuseppe era uma criança quieta e muito séria. Seus pais não eram ligados à música e a própria aldeola de Roncale só ouvia o que era tocado na igreja e o que os raros rabequistas ambulantes apresentavam de quando em quando. Bagasset, um desses rabequistas, encantava Giuseppe à sua passagem.

Aos sete anos, Giuseppe era o coroinha da igreja da pequena Roncale. Numa ocasião, durante a Missa, se deixou absorver totalmente pela música que tocava e esqueceu de passar a água ao celebrante, levando um pontapé que fez com que rolasse pelos degraus do altar, estatelando-se pálido e ensanguentado no chão do templo. Nesse estado lamentável foi levado para casa. Diante do susto dos pais que lhe perguntavam o que havia acontecido, respondeu: “Deixem-me aprender música!”

O pai comprou-lhe uma velha espineta. Do primeiro contato com o instrumento surgiram alguns acordes agradáveis para alegria do pequeno Giuseppe. Mas ao tentar repetir o feito sem sucesso extravasou sua decepção usando um martelo. Cavalletti, um afinador, foi chamado e fez os reparos sem aceitar pagamento, deixando dentro da espineta um bilhete: “Eu, Stephen Cavalletti, consertei estas alavancas e estes martelos e coloquei os pedais, de que faço presente, juntamente com as alavancas, por ver como o jovem Giuseppe Verdi está disposto a aprender a tocar este instrumento; isto significa para mim paga suficiente.” Verdi conservou a espineta pelo resto da vida.

Baistrocchi, o organista da aldeia, ensinou a Verdi os rudimentos da educação musical. O menino fez tais progressos que, falecendo o mestre, ocupou-lhe o lugar de organista aos 12 anos de idade. Na mesma época, frequentava uma escola em Busseto, voltando a Roncole todos os domingos por causa das atividades da igreja. A dedicação lhe valeu uma grande popularidade entre os aldeões, a tal ponto que, quando o bispo quis substituí-lo por um protegido, a população invadiu a igreja exigindo sua permanência.

Carlo Verdi, o pai de Giuseppe, fazia as compras de suas provisões em Busseto no estabelecimento de Antonio Barezzi, um comerciante bem sucedido. Não raro o menino de dez anos acompanhava o pai. Algumas vezes o próprio Giuseppe levava os pedidos. Barezzi tocava flauta e clarinete e era presidente da Sociedade Filarmônica local. O negociante gostava muito do menino e, apesar de seus dez anos, aceitou-o como empregado. Com isso, Verdi teve a oportunidade de estar em contato freqüente com a música, acumulando valiosa experiência na cópia de partituras, além de tocar duetos ao piano com Margarida, a filha do patrão que, mais tarde, viria a ser sua esposa. Ferdinando Provesi, organista de Busseto e regente da Sociedade Filarmônica, lecionava música para Verdi. Quando este estava com dezesseis anos, Provesi renunciou a ambos os cargos em seu favor. Verdi se tornara, então, pessoa de destacada importância na pequena cidade.

Apoiado por seus concidadãos, o futuro compositor foi para Milão com o auxílio de um subsídio de uma sociedade beneficente de sua comunidade, acrescido de generosa quantia que o comerciante e músico Barezzi fez questão de acrescentar de forma pessoal.

Em Milão Verdi tornou-se discípulo do compositor Lavigna, que era bastante experiente no campo da ópera, graças à sua condição de cimbalista na Orquestra do Teatro Scala. Com Lavigna, além de fazer um curso sério de harmonia e contraponto, Verdi pode valer-se da grande experiência prática operística do compositor, o que lhe foi extremamente útil.

Amigos desde criança, Verdi casou-se com Margarida Barezzi em 1835. Nos três anos que se seguiram, tiveram um casal de filhos. Em 1839 a família transferiu-se para Milão.

Os projetos e tentativas de realizações em Milão sofreram uma série de contratempos e cancelamentos, provocando em Verdi uma profunda decepção, a ponto de pensar em abandonar a carreira de compositor de óperas e retornar a Busseto. Margarida, sua esposa, não só dissuadi-o da idéia mais ainda, mais tarde, diante de dificuldades financeiras, penhorou suas jóias para que fosse possível a permanência da família em Milão.

Além de enfrentar terríveis problemas financeiros Verdi começa a ter problemas de saúde, acometido de uma doença que lhe atacava o coração. Como se isso não bastasse, seu filhinho de 3 anos morreu nos braços de Margarida, vítima de um mal que os médicos não puderam descobrir. Dias depois era a filhinha quem jazia nos braços da mães desolada. Dois meses depois era o funeral da própria Margarida, vítima de uma inflamação cerebral, que saía da casa de Verdi. Em apenas dois meses sua família havia sido dizimada e ele ficou extremamente só.

“Com a alma torturada pelas desventuras, desgostoso com o insucesso do meu trabalho, fiquei convencido de que era inútil esperar consolação na arte e decidi não mais compor.”, diria o compositor mais tarde.

Merelli, famoso diretor do Scala de Milão, foi quem fez Verdi quebrar sua resolução de não mais compor, quando colocou no bolso de seu casaco o libreto de Nabucodonosor, de autoria de Solera. Verdi dedicou-se com afinco à obra e à 9 de março de 1842 estreava o seu primeiro grande triunfo. Todos perceberam a grande força desse trabalho e que um novo espírito penetrara na ópera italiana. O coro do povo hebreu cativo, Va Pensiero, obteve grande êxito junto à população do norte da Itália, então sob dominação austríaca, que sentiu na letra e na música a expressão de suas próprias aspirações de liberdade. Enfim, o vigor e a energia de Nabucco provocaram no úblico italiano amante da ópera uma reação como há muito não se via nos teatros. E, tendo conservado sempre a mesma tônica em suas obras, Verdi passou a ser visto e respeitado como um grande patriota. O público se apegava a qualquer coisa nos libretos de suas óperas que se pudesse aplicar à política, isso muito por conta da dominação estrangeira a que era submetido.

Verdi, contudo, não tinha nenhuma propensão à política , acreditando que os cidadãos deveriam abster-se da lutas partidárias e trabalhar arduamente pelo bem da pátria.

A principal intérprete de Nabucco foi a soprano Giuseppina Strepponi, que viria a ser sua esposa.

Daí em diante os sucessos sucederam-se rapidamente e Verdi tornou-se um homem abastado e, mais tarde, extraordinariamente rico. Com o dinheiro de seus primeiros sucessos adquiriu algumas casas nas proximidades de sua terra natal, que mais tarde viriam a transformar-se numa esplêndida propriedade, administrada pelo próprio compositor, homem de negócios escrupuloso e sagaz em que se havia tornado.

Verdi produzia num ritmo vertiginoso nesta fase de sua vida, chegando a produzir mais de uma ópera por ano.

Mais tarde, até porque o seu trabalho e seus temas exigiam muito mais elaboração, o compositor produz mais lentamente, resultando, por outro lado em obras de maior vulto.

À esta altura Giuseppe Verdi já é um grande destaque na música européia. Rico, admirado e festejado, o compositor é o único representante da arte musical italiana em franca atividade. Recolhido à sua propriedade, que fica próxima a Roncole, vive em companhia daquela que foi uma das maiores intérpretes de suas óperas: Giuseppina Strepponi, que renunciou à carreira artística para permanecer junto a ele. Incentivado pela presença afetuosa de Giuseppina, Verdi compõe Rigoletto, que estréia com sucesso estrondoso. A tristeza não tardaria, contudo, a abater-se sobre ele. Logo em seguida morre Luisa Verdi, a mãe de Giuseppe, na propriedade em que ele instalara confortavelmente os pais. Longos meses de silêncio se fizeram novamente em sua vida.

Pouco tempo depois, Salvatore Cammarano oferece a Verdi o libreto de Il Trovatore, que o compositor transforma em um êxito ainda maior que Rigoletto.

Em 6 de fevereiro de 1852, Verdi vai em companhia de Giuseppina assistir à encenação de “A Dama das Camélias”, no teatro parisiense Vaudeville. Impressionado pela qualidade teatral do drama, o compositor resolve transformar a história em ópera com o nome de La Traviata, que compôs no curto espaço de seis semanas, com a colaboração do libretista Francesco Maria Piave, obra que viria a tornar-se junto com “Rigoletto” e “Il Trovatore” as criações mais conhecidas de Verdi e que lhe deram o definitivo sucesso mundial.

Reconhecido ainda em vida, se fosse importante para ele, seria coberto de honrarias, mas Verdi achava que essas coisas nada significavam, chegando a recusar títulos que lhe foram outorgados.

Aos oitenta e dois anos Giuseppe Verdi escreveu: “Nascido pobre, numa aldeia, não tive meios para aprender qualquer coisa. Deram-me uma miserável espineta e, pouco depois, comecei a escrever notas... notas e notas... nada senão notas! E foi tudo. O pior é que agora, com oitenta e dois anos, duvido que as notas valham alguma coisa! É um tormento para mim, uma desolação!”

Em 1897 morre a querida companheira Giusepinna. As forças começam a faltar ao velho e robusto corpo do compositor. A solidão, antes hábito e tônico para o seu trabalho, tornou-se fonte de melancolia.

Três anos após a morte de Giuseppina Verdi escreveu a um amigo: “Embora os médicos me digam que não estou doente, sinto que tudo me apoquenta: já não posso ler nem escrever; minha vista não é boa, a minha audição é ainda pior; e acima de tudo, os membros já não me obedecem. Não vivo, vegeto. Que estou a fazer no mundo?”

Em 21 de janeiro de 1901, no seu aposento do Hotel de Milão, enquanto se vestia, foi vitimado por um ataque que o levaria à morte seis dias depois.

Foi sepultado como pediu em testamento: “...muito modestamente, ou de madrugada ou com as Ave-Marias, à noitinha, sem música.” Seus restos mortais foram colocados ao lado dos de Giuseppina. Depois foi homenageado com um funeral público de grande pompa, reservado habitualmente a chefes de estado.

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns pelo excelente histórico do compositor! Sugiro que este trabalho de divulgação e educação seja feito em todos os concertos, óperas e balés montados pelo Teatro.